segunda-feira, setembro 25, 2006


XXXVII

Há um livro preenchido com a vida de mortos.
Abre-se uma página e, por ordem alfabética, figura uma lista de pessoas mortas.

As pessoas mortas vivem de facto dentro das pessoas vivas que um dia fizeram parte da sua vida. Não vivem dentro do livro que lista as suas vidas por ordem alfabética.
Por exemplo, em todos os amigos do Álvaro vive aquele que morreu como Cunhal para o livro dos mortos. É a vida do Bertold que os seus parentes conservam no peito e não a vida de Brecht. Essa, está morta noutros livros lidos por quem se julga ser. Não por mim.
Uma troca de vogais basta para se perceber se uma pessoa é viva ou morta. Se eu me referir à vida duma pessoa com a contracção da preposição “de” com um artigo definido essa pessoa vive no meu peito. Se juntar a indefinição ou mesmo a descontracção a uma vida não obtenho nenhuma categoria gramatical, ou melhor, obtenho a morte que é a única categoria definitiva.
A escola é útil. Ensinou-me a gramática.

A escola é útil para ajudar a decidir quem vive e quem se deixa morrer.

quinta-feira, setembro 21, 2006


XXXVI


Nem tudo!
A Água por exemplo! O vinho! O tempo!
Um ângulo de um polígono qualquer!
O vermelho e as cores do arco íris!
O latir de um cão! Vês? Impossível!!
O mar!

A face escondida da Lua!
A beleza de um quadro!
O número de habitantes da terra!
Já tentaste a luz de uma vela?
Ou o amor...

Esquece Lisa, existem coisas que as réguas não conseguem medir.

quinta-feira, maio 25, 2006


XXXV


A Saudade quando existe é a Solidão num fim de tarde. As SS de um regime implacável. Não vale a pena tentar ignorar um oásis porque, mais cedo ou mais tarde, mais sede e mais arde. Todo o deserto dos teus dias contido na casca de um coco. Chamar a isso felicidade é não ter ambição mas, ter coragem. Palavras com o mesmo numero de letras e o mesmo peso na balança das realidades intocáveis.

Disse-me isto Lisa, encostada ao vidro da janela do meu quarto, olhando a chuva, produto concreto de funerais celestes. Tem chovido muito na minha aldeia. Há cheias que deixam a as ruas da minha aldeia vazias. Como se fosse feriado. Como se tivesse morrido uma nuvem muito importante e o presidente dos céus tivesse decretado que o mundo podia afogar a sua mágoa durante dias nas ruas alagadas.

Preciosa com os pés de molho.
A minha mãe tem um problema de calos.
A dona Irfanha fala e o corpo da minha mãe cala-se.

Vou dar um passeio, preciosa, está um dia tão lindo lá fora.

sexta-feira, março 31, 2006


XXXIV

Há um rio poluído que corre sob os teus pés imóveis.
Tu parada entre restos de sonhos e destroços humanos.
Não há nada a fazer para avivar o rubor da flor esquecida.
Flor vermelha de morte anunciada.

É esta a conclusão do livro. Nesta página o meu pai escreveu a palavra fim. Sem surpresas o pano foi corrido e as luzes do teatro paternal foram progressivamente perdendo o brilho até a escuridão envolver todo o espaço que circunda os olhos.
O quarto negro.
Escolheste o teu túmulo. Foste um homem de sorte.

Paz é a palavra ansiada pelos teus ouvidos podres de pai morto.

Não mais direi o teu nome em vão.

Em nome do Pai, do Filho , E da Dona Irfanha

sexta-feira, março 24, 2006


XXXIII

Hoje na escola aprendi a pontuação. O meu pai morreu, ponto final.
A sua morte deixou-me um livro e reticências...

É importante o livro. Talvez porque o meu pai não o foi. Talvez por ser um ponto de interrogação escrito com os seus próprios dedos. Ou talvez pela conjugação destes dois pontos.

O último capítulo do meu pai fez-me pensar na minha mãe em lágrimas.


Último Aviso do Livro dos Avisos escritos de Pai para Filho.

Olhar para trás e não ver.


É esse o segredo para conseguir viver sem o grito da consciência a furar os tímpanos com lanças de culpa.
Não perguntes nada a um calendário inerte pois a inércia nunca será a resposta correcta, será apenas a resposta que procuras... porque nunca é fácil viver esmagado pelo peso de um elefante.

terça-feira, janeiro 10, 2006


XXXII

A dona Irfanha interrompeu a limpeza do quarto crescente. Encontrei isto no meio do escuro... ou do sujo, não tenho a certeza.. são tão parecidos. Toma! E deu-me um livro para as mãos. Livro dos avisos escritos de Pai para Filho. Era um livro novo coberto de pó velho. Era a razão do silêncio que existia quando, eu e o meu pai éramos as únicas pessoas com voz dentro de casa. Os avisos de Pai para filho são para ser lidos, nunca para serem ouvidos. Abri-o na primeira página. E li:


Aviso I do Livro dos Avisos escritos de Pai para Filho.

A mentira existe:
- Usá-la sempre.

Se a tua amante te engole o sexo, não lhe digas que é o coração o órgão que em ti está frio. Ou ela urinar-te-á o peito antes de desaparecer para sempre.

Mentir é sempre a solução mais higiénica.

quarta-feira, dezembro 28, 2005

XXXI


Lisa: "Nem sempre as certezas são a base para algo seguro."

Ontem vi a beleza escrita na parede comum . Todo o meu corpo se rendeu à harmonia das curvas que aquelas letras transpiravam. O meu dedo mindinho estremeceu e, como que assaltado por uma vida que não a minha, percorreu os traços deixados na parede pela mão mais perfeita da divina perfeição. Rasto de tinta azul com lágrimas de choro vermelho. Segui-o. Estou certo que é isto o amor.. Uma mistura de beleza inverosímil de lágrimas, cor e perfeição.

O rasto conduziu-me a um caixote escuro, ao fundo de um beco de papel. Um beco com uma única saída... Imaginação.
Dentro do caixote estavam pedaços de alguém. És tu? perguntei hesitante... A resposta demorou o tempo de uma batida de coração acelerado. Não.. Não sou eu.. eu sou os restos de quem procuras.. devias ter chegado mais cedo... mais cedo.. antes da tua falta me ter criado.. antes do teu amor estar perdido para sempre na inutilidade destes dejectos..


A dor no peito.. arrancaram-me o coração, pensei. Já não preciso dele. Mas a dor... Intensa... As lágrimas a saírem-me dos olhos como balas... lágrimas vermelhas... caindo a meus pés. confundindo-se com o sangue da minha amada.. Trama... o seu nome.. doce Trama.. E por isso o beco era de papel.. Agachei-me e mergulhei o meu dedo mindinho no nosso amor: lágrimas e sangue...


Escrevi:
Beleza...


XXX


A minha mãe tem uma amiga que não tinha amigos.
A senhora Irfanha vem todos os dias a minha casa tomar chá, jogar ao pisa-pé e falar de nuvens mortas.
Quando uma nuvem morre as outras choram e as plantas vivem, dizia para a minha mãe.
É o ciclo da vida. Tu, por exemplo, só viveste porque a senhora Tápu morreu.
A senhora Irfanha é famosa na minha aldeia. A senhora Irfanha é loura mas tem fama de louca. A sua fama é uma letra de diferença.


A senhora Irfanha gosta de ter tudo limpinho. Principalmente aquilo que não sabe para que serve. Não vá um dia ser preciso, dizia. Todos os dias limpa as pedras do seu terraço. Limpa a parte de baixo dos móveis. Limpa os rótulos negros das compotas. Limpa os espinhos da roseira. Limpa a parte branca do olho. Limpa caroços de melancia. Limpa nuvens vivas. E limpa o sexo. Não vá um dia ser preciso, dizia.

A casa da senhora Irfanha tem um espelho tapado com um pano preto. Gosto de estar sozinha, replica. É um espelho antigo que Irfanha comprou a um mágico vidente. Quando estava sol ele olhava o espelho e dizia: VAI CHOVER!! e, mais cedo ou mais tarde chovia mesmo. A senhora Irfanha comprou o espelho para estar a par dos funerais celestes. Quando as nuvens choram fica triste e pisa as plantas do canteiro.
Malvadas!! por vossa causa o céu está de luto!!!

Diana Tápu.

Aquilo que não sabe para que serve.

Morte.



Já acabei o chá, Preciosa! Vamos jogar ao pisa-pé?

XXIX


Passou um mês com o tempo de um ano. Um ano são poucas horas para as que coisas que acontecem num mês aconteçam. Eu, tenho vivido. Vivido calado.

(pausa)

(os corvos param de praguejar)

(ouço a voz da minha mãe a chamar pelo nome que escolheu à 9 anos)

Lisa: A mãe do Walter acordou quando o quarto crescente foi lua cheia. Ás vezes é preciso que pessoas se percam na escuridão que constroem para que as pedras abram os olhos à luz..

Conheci a minha mãe. falei com ela e ela comigo. disse-lhe olá!!! e ela disse Quem és???

Não soube responder.
As perguntas de sempre parecem ameaçadoramente maiores quando nascem da boca de alguém importante.

sexta-feira, outubro 21, 2005


XXVIII




A simplicidade existe.

quarta-feira, outubro 19, 2005


XXVII

Brinco no jardim da minha casa. A flor vermelha não saiu do seu lugar enquanto estive fora. Não cresceu. Não fugiu. Não murchou. Por isso é bela. Tudo o que rodeia a flor vermelha são pedaços harmoniosamente conjecturados de beleza. Não uma beleza em si mesma mas uma beleza atmosférica, quase ambiental.
A minha aldeia é o meu ambiente. Só aqui é possível ser aquilo que, naturalmente serei. O mundo é infinitamente pequeno quando comparado à minha aldeia.
Só posso ser este local. O mundo não tem nada para me oferecer.

E o nada é tão, tão pequeno.

Depois da guerra, a minha aldeia fez, subitamente, parte do mundo.
Era agora mencionada no grande livro. Três palavras eram a minha aldeia no Livro da História Universal: pai, GUERRA, eu.
Esta “conquista” modificou as pessoas da minha aldeia. A nova História deixava os crescidos orgulhosos de si próprios quando era a sua terra, e não eles que figuravam no grande livro. Como se o orgulho fosse uma coisa nascida do chão que se pisa e não dos pés que pisam.

Orgulho pisado, disse Lisa pensativa.
A História ganhou importância na aldeia. Então, as pessoas crescidas decidiram estudá-la de uma forma obstinada. Como a História está em permanente mudança, as pessoas da minha aldeia estavam em permanente reunião, registando todos os segundos que por cá passavam. Um dia seremos pessoas a sério, ouvia-se.


Mas História morreu. Deixou de haver História na aldeia. Não havia pessoas que fizessem algo digno de registo, pois todas estavam dignamente empenhadas em registar:

12:22:56__________________________
12:22:57 ________________
12:22:58 ________
12:22:59 ___
12:23:00

As escolas reabriram quando a guerra fechou e a História morreu.


Professores e seus estudantes vinham até à minha rua dizer: aqui mora a guerra.

Os Jornalistas perguntavam-me como é que o meu pai tinha começado a guerra e porque é que eu a tinha acabado.


Há qualquer coisa de estranho nas pessoas, disse Lisa, distraída.

terça-feira, outubro 11, 2005




XXVI

Leitura da primeira Carta aos Guerrilheiros


Existem fantasmas.
Hoje, os fantasmas de ontem atormentam as horas.
Há fantasmas dos quais não nos lembramos. Que não associamos a um pesadelo.
Mas eles existem.
Assombram-nos de forma quase imperceptível. Só o mau estar. Só a sensação imprecisa de qualquer coisa debaixo da nossa pele. Nada mais.
Os fantasmas discretos fazem cócegas que incomodam, disse um dia Lisa.

Os fantasmas existem. São algo que fica de alguém que se vai. São o que fica e fica a mais. Já matei pessoas na guerra. Aqueles que matei não me deixaram nada. Porque haviam de o fazer?! Eu era apenas um menino! Não havia qualquer ligação emocional entre nós. Apenas o respeito que um predador tem pela sua presa.
No entanto, aqueles a quem apunhalamos o coração para que não bata.
Para que não nos bata mais. Esses sim, assombram-nos com a sua partida porque nunca partem verdadeiramente.

Os fantasmas existem. Não à nossa volta. Mas dentro de nós. Assombramo-nos com memórias falsas. Nada foi realmente da forma que te recordas. Só tu existes, quem morre não existe em ti.. Existirá sempre a tua recordação de quem não existe. Mas é tua!
Pode ser doce se assim o quiseres.


Que se lixe o fantasma da senhora Tápu!!!! Que se lixe o fantasma do meu pai!!!
A partir de hoje as cócegas serão motivo de riso!

sexta-feira, outubro 07, 2005


XXV

Num reino muito, muito distante da minha aldeia, vive a filha de um rei.

Princesa perfeita, chamavam-lhe, e ela, era a aparição verdadeira de um sorriso criador de pequenos paraísos.

A princesa perfeita não tinha defeitos. Era modesta, simpática, carinhosa, bondosa, altruísta, sincera, doce, solidária, amável, hospitaleira, inteligente, cativante, misteriosa, sensível, compreensiva, harmoniosa, romântica e feia.

terça-feira, outubro 04, 2005


XXIV

Alguém perguntou um dia: “do meu corpo, qual foi a razão para que a morte e a solidão começassem?” Ninguém lhe respondeu.

Há coisas em nós! Coisas que nos fazem sentir e não são nossas. Coisas que fazemos quando não somos o corpo que conhecemos. A morte. Doença crónica. Nascemos com ela para, um dia, morrermos por ela.
Vivemos para nós próprios, ouviu-se na floresta.

Não há pessoas na floresta mas, para que a guerra chegue à aldeia mais próxima tem que passar por aqui. E quando a atravessar também deixará de haver árvores e bichos na floresta. Deixará de haver floresta na floresta.

Mas, é importante que a guerra chegue à aldeia mais próxima! É importante que pessoas morram para outras sentirem o milagre de estar vivo! É importante que pessoas sejam feitas escravas, para que a liberdade seja uma palavra bonita de dizer.
É sempre importante lutar por uma causa. E quando a causa é uma morte, é importante matar por ela.
Já não me custa matar estranhos, bichos ou amigos. Já me é tão natural como respirar. Encho o peito de ar, aponto a pistola, liberto o ar dos pulmões e uma bala.

É divertida a guerra. Divirto-me a matar como se fosse um menino mau. Hoje matei um porco. Assei-o. Comi-o.
Sou um assassuino, pensei sorrindo.

quinta-feira, setembro 29, 2005


XXIII

Cobarde! A cobardia é o mais recente reflexo no espelho do meu pai. Ele já preparava esta morte há muito tempo. Construiu o quarto negro para nele se refugiar.
Os homens da minha aldeia viram a sua felicidade colectiva verter sangue e morrer. Não ficaram tristes com a ausência de felicidade. Ficaram furiosos! Quando a felicidade morre nasce o ódio e não a tristeza. Juntaram-se em torno de uma causa como nunca o haviam feito. A morte é importante, gritavam. Invadiram a minha casa. Revistaram tudo. Mas o quarto negro era grande demais: como a noite de um pequeno país. Não encontraram nada, apenas a lua sempre crescente do quarto negro. Dizer que não encontraram nada é dizer que não encontraram o meu pai. Dizer nada é dizer pai.

O meu pai trouxe a guerra à aldeia. Onde antes havia um homem ludibriado pelos encantos da senhora Tápu existia agora um guerrilheiro e o azedume do seu sorriso.
Estamos em guerra! Temos que estar em guerra! A guerra é a forma mais fácil de resolver os problemas do homem, gritou o rei da aldeia.

Escolheram o inimigo. O inimigo era ‘os maus ’. ‘Os maus ’ eram todos os outros!
As mulheres ficavam em casa. Preparavam a bucha para os guerrilheiros. De manhã, o guerrilheiro dizia para a esposa, vou à guerra, ela dava-lhe um beijo rápido na cara e dizia, não venhas tarde. Os meninos pequenos também iam à guerra. Eu também ia à guerra. Todos os dias um tanque comprido vinha buscar os meninos a casa.


A escola fechou. Para quê aprender a escrever um ensaio quando o que é preciso é saber onde espetar uma faca.

Não sei ler. Nem escrever. No entanto, hoje, apunhalei um menino que escrevia poemas de amor.

quarta-feira, setembro 28, 2005


XXII

Bati à porta. O sorriso que o meu pai tinha nos lábios não desapareceu quando eu apareci. Estás atrasado ,disse-me. E, num passo acelerado, trancou-se, sorridente, no quarto crescente.
Entrei em minha casa da mesma forma que se entra na casa de um estranho. Tudo estava igual, nenhum objecto se deslocara um centímetro durante o tempo em que estive fora, no entanto tudo me parecia diferente. São os teus olhos, Walter, disse Lisa enquanto se aproximava, és tu que estás diferente e vês as coisas com essa diferença que mora em ti. Lisa, és mesmo tu?? Oh Lisa, Lisa! Que saudades! Sabes Lisa? Eu chorei !! Sim!! E fiquei triste!! E vi uma Sereia! E um Bêbado! E uma Velha! E vi um dia preto! E a aldeia chorosa! Vi o mundo, Lisa! Vi o mundo! Viste um mundo que não era o teu.
Ontem, no teu mundo O teu pai matou uma pessoa. Ontem, no teu mundo, o teu pai concretizou um desejo antigo. O teu pai matou uma pessoa e foi feliz. Matou por amor! Matou por egoísmo! Matou quem amava por amor profundo, que é o egoísmo elevado ao extremo de um abismo infinito.
Oh não!! Mamã?!

Não Walter.

A Senhora Diana Tápu morreu.

quinta-feira, setembro 22, 2005


XXI

Há um rio que nasce na aldeia Chorosa momentos depois de nascer uma lágrima. Há um rio que faz com que a água do mar seja salgada. No mar, quando o tempo aquece, pessoas flutuam em lágrimas e sorriem. A felicidade não é uma coisa universal. Fico feliz por saber que há pessoas que choram para outras poderem molhar os pés. Fico feliz por saber que a tristeza de alguém pode se transformar numa coisa bonita como um mergulho na onda perfeita.
Nunca fui à escola. Mas a Lisa diz que ninguém explica aos meninos porque é que o mar é salgado. Na escola ensina-se letras e números. Ensina-se histórias e vísceras. Ensina-se que um dia nasceu uma pessoa importante. Ensina-se que só as pessoas mortas são importantes.

Ensina-se a não falar com colega do lado. Se for o nosso amigo, separam-nos e colocam-nos em extremos opostos.
Na escola, ensina-se que jogar ás escondidas não presta. Ensina-se futebol aos meninos e ballet ás meninas.
Lisa já esteve em escolas. Lá ensina-se que os meninos ricos são espertos e que os pobres são pobres. Ensina-se que os meninos ricos podem bater nos meninos pobres e que as professoras podem bater nos meninos pobres.
A escola é um mundo diferente. As réguas não falam, batem nos rabos.
Na escola ensina-se a ser mais crescido. Os meninos mais crescidos ensinam palavras aos meninos mais pequenos. Palavras que ouvem à porta da senhora Tápu e que repetem aos ouvidos uns dos outros. Palavras que a professora diz que são feias enquanto lhes bate na boca com a régua de pau. Palavras que a professora grita entre os lençóis enquanto lhe bate na boca um outro pau.
Palavras irrelevantes como todas as outras para quem é pequeno e não sabe ler. Nem escrever.
Para quem não andou na escola mas sabe porque é que o mar é salgado.

segunda-feira, setembro 19, 2005


XX

Eu estou triste. No entanto é possível ser feliz na aldeia Chorosa. As pessoas não choram porque estão tristes. As pessoas choram porque são pessoas.
Os cães não choram na aldeia chorosa porque os cães não choram. Eu choro.
Lembro-me das palavras pequenas e das palavras grandes. Aqui não existem palavras. Para que queremos palavras quando temos lágrimas?! Quando choramos não queremos falar com ninguém. Não é preciso falar quando se chora porque é mais fácil sentir lágrimas do que palavras. As palavras são coisas tão estúpidas e invisíveis para quem é pequeno e não sabe ler. Nem escrever. As lágrimas, por seu lado estão lá! São reais!!
A minha aldeia é real e eu quero ser dentro dela. Quero aprender a ler e a escrever! Quero saber porque escrevem os artistas! Com que lágrimas pintam os poetas?

Uma senhora idosa aproxima-se de mim. Não fala. Chora lágrimas que lhe secam o corpo. Chora lágrimas de vida. A vida sai do corpo velho daquela senhora idosa e cava trincheiras na sua cara. As lágrimas cavam a as trincheiras no seu rosto. Estamos em guerra, diria, desde o momento que nascemos lutamos para que sintamos a morte. Lutamos todos os dias para que o dia da morte seja um dia mau! Terrível!! Horripilante!!! Para que não seja só mais um dia do mundo! E eu estou viva! Vês estas rugas na minha cara? Estão por todo corpo!! É impressionante não é? Elas provam que estou viva! Vivo todos os dias desde o dia em que nasci! É impressionante não é?

És uma velha. Quando for grande quero ser como tu! Um velho.

Um velho que viveu todos os dias desde o dia em nasceu uma pedra.
Mais importante: Um velho que VIVEU TODOS OS DIAS.

sábado, setembro 17, 2005


XIX

Não há nada que me indique o caminho para a minha aldeia. Nem a brisa. Nem o sol. Nem as plantas. As árvores e os seus ramos apontam para todas as direcções possíveis. Cada ramo que rasga um tronco de árvore, nasce com um objectivo: indicar o caminho de uma vida.. Há milhares de árvores nesta floresta! Milhões de ramos e alternativas!
Só tenho que escolher um e esperar que seja o correcto.
Fecho os olhos. Viro a cabeça para o lado esquerdo do corpo. Abro os olhos devagar. E escolho o primeiro ramo que vejo.
Ali está o ramo que me levará ao meu ninho, pensei sorrindo.
A esperança crescia em mim a cada passo que dava em direcção à direcção profética. Sim profética!! Não são os “profetas” os adivinhos! O que realmente é poderoso e mágico são os seus bastões, as suas bengalas, os seus cajados, os seus paus de caminhante, os seus ramos de árvore-que-aponta-o-caminho.
E a consciência de tudo isso fazia a esperança aumentar de tamanho e de peso! Naquele momento nenhum sentimento era tão relevante como a esperança. Alias nenhum sentimento é relevante quando o não sentimos. Ali era esperança o que sentia! Esperança e a excitação a ela inerente.
Se o futuro bastão do próximo salvador dos hOMENS não se equivocara, depois deste monte, serei capaz de vislumbrar a minha aldeia. E depois a casa da senhora Tápu. O meu pai a percorrer o caminho que une a sua casa à da senhora Tápu. A percorrer a única coisa que de facto os une. Depois a minha casa! Depois Lisa!! A Mãe!!! A flor Vermelha!!!!! Estou tão entusiasmado que quando vejo a aldeia do cimo do monte, o meu peito quase rebenta com a súbita transformação da esperança em radiante certeza!!
Desço o monte a dar cambalhotas! Cambalhotas e gargalhadas! Como um menino pequeno que regressa a casa! Ah! Ah! Ah!




Não ha casa.... Ha chuva! A minha aldeia não é esta!! As pessoas! As ruas! Nada disto é o que é minha aldeia! Não há um pai que seja meu! Nem uma régua que fale! Porquê?
A esperança desaparece como se não houvesse já nada vivo... Os meus olhos enchem-se de água e sal e desilusão. Choro como se a função dos meus olhos fosse chorar! Como se os olhos não servissem para ver. Como se os meus olhos não vissem a minha aldeia e apenas chorassem por ela.


E as minhas lágrimas embatem no solo molhado da aldeia chorosa.

terça-feira, setembro 13, 2005


XVIII

Agora sou obrigado a crescer! Mesmo que já não me apetecesse ser uma pessoa crescida teria de o ser obrigatoriamente. Eu estou perdido na floresta. Não sei voltar atrás e ser menino outra vez na minha aldeia. Não tenho a minha amiga a meu lado para me garantir que sou o mesmo! Que os centímetros não passam por mim como passa o tempo! Mede-me Lisa! Mede-me as memórias para saber o quanto de ti perdi no tempo que separa a minha casa do pedaço de chão onde apoio os pés. Quanto de mim se perdeu com o que se perdeu de ti na minha memória? Acredito que seja muito. Acredito que tenha pouco daquilo que um dia fui. E tu Lisa? Quem eras tu? Uma régua? Ridículo!! As réguas não são coisas vivas! Pois não? As coisas vivas vivem em florestas e eu nunca vi uma régua nesta floresta de perdição...
A inverosimilhança da minha infância cai sobre mim como um pesado elefante cinzento! Cinzento ouviram? Não de outra cor qualquer porque não existem elefantes de mais nenhuma cor! Só o cinzento e sua monotonia. Ser crescido é estabelecer fronteiras à imaginação!! É aceitar a imaginação como um trabalho! É aceitar tudo como um trabalho! E um trabalho é uma coisa chata que, de vez em quando, tem de ser feita!! E ter de fazer algo é estar a ser forçado... Foi por isso que eu saí da minha aldeia não foi, meu dEUS?

Não é o lugar onde assentamos os pés, que nos transforma naquilo que iremos ser.

É a amplitude dos nossos passos.

Vou voltar para a minha aldeia... mas primeiro tenho que encontrar o caminho.
O meu caminho.

XVII

Há uma sereia na floresta. Há uma sereia sentada numa das muitas pedras mortas da floresta. E eu vi-a.

Era uma seria muda e bonita só que em vez de uma barbatana de peixe tinha duas pernas de mulher.
Perguntei-lhe o que estava a fazer uma sereia tão bonita num sitio tão feio e tão seco.

Não te posso responder porque sou muda. Mas se o não fosse dir-te-ia que sou uma sereia aventureira. Sim! Procuro uma coisa especial. A coisa mais importante e preciosa que existe no mundo!! Procuro aquilo que é capaz de mudar a vida das pessoas! Aquilo que é tão grande que não cabe numa palavra. Procuro aquilo que, por ser tão grande, nos enche os corações e não nos faz desejar mais nada!! No fundo procuro a única coisa capaz de dar sentido à vida. Aquilo que faz com que a vida queira viver! Percebeste o que eu não disse?

E como eu a entendo! Ela quer alguém que chore por ela. Ela que alguém que possa construir um oceano de água salgada onde ela possa nadar com as suas bonitas pernas de mulher. Ela quer um mar de lágrimas!

Se eu já fosse crescido e triste podia dar-lhe o que ela não me pediu.
Se eu fosse crescido e triste podia fazer as pedras tremer dizendo uma palavra pequena.

Mas não o faria porque existem pessoas mudas . Pessoas que não conseguem dizer: “Também te amo meu amor”

sábado, setembro 10, 2005


XVI

Eram horas da noite começar.
Eu fechei os olhos e pedi ao dEUS para que ligasse o candeeiro do céu.

Há coisas que, por ser um menino pequeno, gostaria que fossem diferentes daquilo que são.

A noite é uma delas.
As estrelas são tão bonitas, dizia muitas vezes para a minha régua, a lua é tão mágica tão viva! È uma pena serem horas da noite começar quando finalmente as coisas bonitas nascem no céu. È uma infeliz coincidência serem horas de dormir quando são horas da noite começar. Para quê criar tamanho espectáculo visual se não há ninguém com os olhos abertos quando chegam as horas da noite?
Mesmo que alguém tente resistir ao peso da escuridão sobre as pálpebras, não o consegue fazer durante muito tempo. Há coisas tão belas que não lhes são permitidos olhares demorados. Se a Lisa aqui estivesse diria que o sono é censura ao serviço de dEUS.

Aposto que no momento em que fechamos completamente os olhos e perdemos parcialmente a consciência, nesse momento único de uma demência dormente, o espectáculo celestial começa.
Aposto que todas as coisas visíveis no céu deixam de estar paradas no momento em que deixamos de estar acordados. Todas as longínquas bolas de fogo transformam-se em bonitas bolas de fogo e de arte.
Há um grande fogo de artificio universal quando juntamos as pálpebras!!
Dizem mesmo que o universo nasceu da beleza e da força de um fogo de artifício.

Acho que é por isso que o dEUS criou o sono. Para nos impedir de criar um universo nosso e real.
Para nos iludir, o sono criou o sonho. Podemos criar universos inteiros com foguetes e tudo. Mas o acordar transforma o tudo em nada tão depressa que até a memória do tudo, surpreendida, se deixa transformar em nada...

É por isso que acho que o dEUS é mau. E se o dEUS é mau é porque é um hOMEM.

dEUS é o hOMEM que não dorme...

quinta-feira, setembro 08, 2005


XV

O dia ergueu-se, como em todos os dias. O sol não se ergueu com o dia. O dEUS, ocupado com a insignificância dos sonhos do hOMEM, esquecera-se de trocar a lâmpada do candeeiro do céu. O dia estava mais negro que a noite. De noite há a lua e as estrelas. De dia, se não há sol, não há nada. E o nada é escuro.

No entanto havia uma luz na floresta. Uma luz vermelha e intermitente. A luz quente de uma fogueira. À volta da fogueira, sentado no chão, estava um velho bêbado e feliz. Ele era feliz porque era bêbado. Eu falei com ele porque era velho.
Sabes rapaz, disse o feliz, para teres uma mulher que te ame, tens que saber “lá ir”. E eu sei “lá ir”. Eu tenho uma mulher que me ama. Eu sei o que é o amor. Ao ouvir a palavra amor nada mudou em mim. Lembro-me que quando o meu pai dizia: Preciosa, eu amo-te, havia tremores de terra na aldeia. Não só a minha mãe estremecia, como todas as pedras o faziam. Ali.. Nada... Os bêbados retiram a importância ás palavras, pensei. As palavras dos bêbados, quando abandonam a sua boca perdem a coisa que de mais precioso têm... o significado.

Um bêbado fala e a palavra não diz nada.
Um bêbado fala e polui o ar com as suas palavras mortas e o seu hálito de morto.

Pobre velho bêbado e feliz.

Se o que dizes é verdade, não tens uma mulher que te ama.
Tu tens um buraco que fala.

XIV

O sol, como uma lâmpada brilhante, colidiu com o chão duro. O sol como uma lâmpada dividiu-se em mil estilhaços quando colidiu com o chão. O fio fino e ténue que habita o interior das lâmpadas, o fio que é a fronteira entre a Luz e as Trevas quebrou-se com a violência do impacto e desapareceu na escuridão.
Com a queda do sol, a Noite caiu na Terra.

Aqui no escuro da floresta, sinto-me desconfortável porque me sinto só. Chego mesmo a sentir que o desconforto é a tristeza antes de o ser. Sabes Lisa, acho que hoje senti a palavra grande e má que um dia sublinhaste. E senti essa palavra, a solidão, como a primeira pedra de uma calçada comprida que vou ter que percorrer para ser crescido e triste... para ser uma pessoa.

Apeteceu-me gritar os nomes dos responsáveis pela minha solidão! Se vocês não existissem eu nunca saberia o que era estar na vossa ausência... Mas não gritei.

A solidão é uma coisa surda, diria Lisa.
Senti a tristeza a invadir-me.
Sem ti, Lisa, senti a tristeza. Sem ti, Mãe, senti a tristeza. Sem ti, pai, senti a tristeza. Sem vós... senti-me rouco.

Hoje, no escuro solitário da floresta, reparei numa gota que me escorria pela cara. Uma gota que deslizara até ao queixo e se precipitara para o espaço vazio. Uma gota que colidiu com o chão duro e desapareceu na escuridão.

Hoje, cresci uma lágrima.

terça-feira, setembro 06, 2005


XIII

Ao afastar-me de casa, ao afastar-me do centro da aldeia, vislumbrei a casa da senhora Diana Tápu. Parei em frente à porta. Ouvi gritos que eram um misto de dor, ferocidade, e contentamento. Não ouvi a voz da senhora Tápu. Somente a voz do meu pai.

Fiquei muito tempo a ouvir aquele monologo de gritos estridentes. Muito tempo e muitos sons passaram pelo meu desenho imóvel. Estou a crescer, pensei.
Pensei mesmo que para um dia ser uma pessoa crescida teria que ouvir primeiro muitos daqueles sons. Como se não bastasse o tempo passar por mim. Não! Crescer é muito mais complicado que o passar do tempo! Para crescer tenho que fugir para longe. E sinto que tenho que ouvir aqueles sons outra vez! Mais de perto. Mais alto. Mais meus.

Afastei-me da porta quando o meu pai se aproximou da porta. Estávamos separados por uma parede como sempre estivemos toda a nossa vida. Mas desta vez o desenho estava mais intenso. A nossa vida estava mais intensa. Do outro lado da porta, o meu pai e um cheiro intenso a pessoas crescidas. No meio, a parede que sempre nos separou era agora visível e de tijolo sujo. Do meu lado, a porta a ficar cada vez mais longe, a casa a ficar mais longe, a aldeia a ficar mais longe. Tudo a ficar mais pequeno à medida que eu me afastava. E eu crescia.

Tudo me parece tão incrivelmente insignificante agora que estou longe.

O valor das coisas não está na sua real importância. Está na distância a que delas estamos.

XII

Não planeei a minha fuga. Estava farto de ser e então decidi fugir. Acho que aquilo que somos depende do sítio onde estamos. Tal como depende do nome que temos. Eu chamo-me Walter Dego. Se me chamasse Óscar Almeida seria forçosamente outro menino. Se continuasse em minha casa seria forçosamente feliz.
E eu estou farto de ser forçado e de ser feliz.

No dia em que fugi falei com a minha mãe e pedi-lhe para me desculpar como se ela o fosse capaz de fazer. Falei com a minha mãe como se ela não fosse uma pedra. Ao meu pai não disse nada. Nunca digo nada ao meu pai. Falo com ele com o silêncio. Como se falasse para uma pedra.

Parti sem bagagem porque sou um menino pequeno. Os meninos pequenos não têm um passado que pese e que valha a pena transportar. Mas levei três caramelos para o caminho. Um na mão direita. Um na mão esquerda. E o outro na boca, colado ao dente mais inacessível.
A Lisa não quis vir comigo porque a Lisa não é feliz. A Lisa é sábia! E por tudo saber, sabe que não pode ser feliz. Sabe que quando se sabe tudo é porque se é velho. E um velho não pode ser feliz porque nenhuma morte o é.
Mas eu sou ainda um menino pequeno e sou ainda feliz.
Decidi fugir para longe porque decidi crescer
.

segunda-feira, setembro 05, 2005



XI

Sou feliz e estou farto. Sou feliz porque sou um menino e não choro. Ser feliz é uma coisa que sou, não é um estado que dê para alterar. Não pudemos alterar o que somos pois não? Eu sou feliz. E estou farto porque sou feliz. O aborrecimento que me envolve é um estado. Deveria ser alterável. Mas como estou farto de ser feliz e vou ser sempre feliz, pois a felicidade é uma coisa minha e inata, estou condenado a estar para sempre farto e aborrecido. Mas estar permanentemente num determinado estado é ser o que se está não é? Quando passarei eu a ser feliz e farto? Poderei ser sempre feliz estando sempre farto de o ser?

Disse à Lisa que ia fugir de casa. Não disse ao meu pai que ia fugir de casa. Nem uma palavra, nem a mais suave das reacções. A Lisa agiu como seu lhe tivesse dito que ia continuar a respirar. Sem surpresas. Trancou-se no quarto negro. Foi-se surpreender com os novos centímetros que ela sabe que existem.
Existem sempre novos centímetros.

quarta-feira, agosto 31, 2005



X

A senhora Diana Tápu é uma mulher gorda e feia. A senhora Tápu tem uma casa na minha aldeia, mas não tem vizinhos. Para entrar na casa dela as pessoas têm que pagar muito dinheiro. Só os homens crescidos da minha aldeia entram em casa da senhora Tápu. Os homens crescidos e tristes.

Os homens da minha aldeia entram tristes naquela casa e saem contentes. Entram sombrios e saem radiantes. Entram à noite e saem pela manhã.

Acho bonito a senhora Tápu ser capaz de transformar pessoas tristes em pessoas felizes.

A senhora Diana Tápu é uma vendedora de felicidade
.

IX

Comi tantos doces hoje!! Descobri uma caixa branca enterrada no canteiro da flor vermelha. Uma caixa mais ou menos grande!! Do tamanho de um menino acabado de nascer. De um menino que nasceu no dia em que era suposto nascer... ou talvez antes.
A caixa estava suja por dentro e tinha um horrível e fétido cheiro. Mas os chocolates estavam bons!! Estavam guardados dentro de uma caixinha de ferro, a um canto da caixa grande. Havia ainda um pequeno peluche cor de rosa. Na barriga do peluche a Lisa conseguiu ler:

Dos teus pais que te amaram eternamente durante o segundo que durou a tua vida.
Comi os chocolates todos. E quando ali estava a olhar a barriga daquele boneco, a minha barriga doeu-me... não sei se para comunicarem, se por ter comido doces de mais ou se foi por outro motivo qualquer...O que eu sei é que se o meu pai tivesse saído naquele momento do trabalho e visse o que descobri não iria ficar satisfeito. Ele ia dizer o quanto gostava daquele canteiro. Ele ia dizer o quanto gostava da minha mãe. Ele ia dizer o quanto gostava da minha irmã.

Ele ia dizer que me odeia.

terça-feira, agosto 30, 2005


VIII

Há muito tempo que não saía de casa. Nunca tinha saído de casa sozinho. Hoje saí de casa e não levei ninguém comigo.
Lembrei-me que na minha aldeia corre um grande rio por baixo de uma grande ponte. Era um rio de água limpa e salgada. Diz-se que nascia na montanha Alta. Perto da aldeia Chorosa. Ali, as pessoas choram a todo momento. Se estão felizes, choram. Se estão tristes, choram. Se estão com frio, choram. Se têm fome choram. Na aldeia Chorosa as pessoas não põem sal na comida. Porque mesmo enquanto comem, choram. Naquela aldeia as pessoas já não falam. Aprenderam a escutar as lágrimas uns dos outros e é assim comunicam. Se não fosse a aldeia Chorosa, o rio não tinha tubarões. Se não fosse a aldeia Chorosa o rio não sabia a mar.

Hoje fui à ponte grande. Do lado esquerdo da ponte está a minha aldeia, do outro lado estão árvores e animais. Quando as pessoas crescidas da minha aldeia estão muito tristes, vão até à ponte Grande e atiram-se. Acho que é para não se sentirem sozinhos.
Acho que é para deixarem as suas lágrimas misturarem-se nas dos outros. Tornando a dor cada vez mais insignificante. Cada vez mais pequena. Até desaparecer. E com ela desaparece também a pessoa que chora.
O corpo das pessoas tristes e crescidas que se atiram da ponte grande transforma-se em parte de um corpo de tubarão. A alma das pessoas tristes e crescidas que se atiram da ponte grande não vai para o céu, vai para o mar que também é azul e é mais bonito.


VII

Em minha casa, no canto oposto ao sítio onde a minha mãe está pousada, ergue-se um quarto permanentemente em obras. É nesse quarto, o quarto negro, que o meu pai trabalha. Ele está a trabalhar a maior parte do tempo. Vai para lá de manhã cedo, depois de dar o liquido da vida à minha mãe, e tranca-se lá até ao cair da noite. Creio que ele não tem noção do cair da noite, pois o quarto não tem janelas e tem paredes pintadas de preto. Está sempre escuro no quarto negro. Quando o meu pai lá está a escuridão adensa-se.
Todos os dias o meu pai aumenta o quarto negro como se aumentasse a sua própria infelicidade. E todos os dias o quarto fica mais escuro.
Quando o meu pai sai do trabalho eu e a Lisa entramos no quarto. Há sempre mais centímetros novos para medir ali. Mas eu não gosto de estar no quarto negro. Não há uma distracção colorida que se intrometa entre nós e nossos pensamentos escuros. Não há uma luz que nos ilumine o caminho. Não há nada... só o negro do quarto e dos pensamentos... e isso é pior que o nada.

Tomei uma decisão. Amanhã, quando o meu pai sair do trabalho, eu vou entrar novamente no quarto negro. Mas não para lhe medir os centímetros novos. Não. Desta vez vou levar tinta branca e vou pintar uma lua em forma de D.

Resolvi transformar o quarto negro no quarto crescente.

segunda-feira, agosto 29, 2005

VI

Nunca tinha visto uma lágrima a escorregar pelo rosto do meu pai. Hoje vi o meu pai chorar. Ele estava no quarto dos livros e do pó, com um velho álbum de fotografias aberto no colo. Devia estar assim há muito porque tinha uma camada espessa de pó e de tempo sobre ele e sobre o álbum aberto na página da tristeza. A fotografia que mais sobressaía daquela página triste era uma fotografia de um sorriso natural de felicidade estampado na cara do meu pai. Eu nunca tinha visto o meu pai a chorar. Também nunca o tinha visto a sorrir. Hoje vi o meu pai.

A Lisa disse-me para não entrar. Pois eu não aparecia na fotografia feliz. Se eu entrasse e me chegasse perto dele. Se no momento em que eu lhe tocasse um flash disparasse, todos saberíamos que eu era a causa do sofrimento do meu pai. E eu não o queria saber. Por isso fiquei encostado à porta, do lado de fora, tentando imaginar o barulho inaudível de lágrimas a embaterem na alcatifa de pó. O barulho inaudível de lágrimas do presente a baterem, a espancarem um passado reduzido a pequenos grãos de poeira. Eu transformei a pessoa que ele amava numa pedra. Talvez, se tivesse conhecido a minha mãe também chorasse de culpa, em silêncio, do lado de fora da porta do quarto dos livros e do pó.

domingo, agosto 28, 2005


V

A minha mãe vive no quarto branco. A minha mãe não é uma menina nem é uma pessoa crescida. A minha mãe é uma pedra. Foi um acidente que transformou a minha mãe numa pedra e o meu pai numa pessoa crescida. Foi o acidente que me deixou respirar o ar pela primeira vez. Eu não nasci no dia em que era suposto nascer. Nasci noutro dia qualquer muito depois desse. Foi no dia do meu segundo aniversário que nasci. E para o fazer tive que rasgar a minha mãe por dentro. Já era um menino grande e já não precisava de mamar.Mas as pedras também não dão leite.


Preciosa era o nome dela. Agora, é a minha pedra preciosa. Todos os dias a visito. E o meu pai, todos os dias, lhe dá comida transparente por um tubo desprovido de cor. Ela não fala, não vê, não ouve, não sente. Só sabemos que não é uma pessoa morta porque faz xixi e cocó por um tubo sujo. Eu gosto muito da minha mãe. Falo mais com ela do que com o meu pai. Há dias do ano que lhe conto as coisas bonitas. Há dias do ano que lhe conto os jogos que faço com a Lisa. Há dias do ano que lhe conto como é linda a flor vermelha do terraço que ela não viu crescer. Há um dia do ano que lhe peço desculpa. Nesse dia as pessoas crescidas dão-me presentes...

sábado, agosto 27, 2005



IV

Hoje à noite, fui descobrir a Lisa a medir palavras no quarto dos livros. O quarto dos livros é iluminado por uma lâmpada presa no tecto, sem candeeiro sem nada. Só a lâmpada a iluminar o centro do quarto. A iluminar Lisa e um livro aberto. A gravidade de uma campa vazia era o rosto de Lisa no momento em que eu entrei. Fiz uma descoberta fantástica, disse ela num sussurro. Aproximei-me dela e vi que haviam palavras sublinhadas entre a imensidão de palavras por sublinhar. O que são?, perguntei. São palavras às quais as pessoas crescidas dão significado. Vês esta? É o amor. Esta é a solidão. Esta é a loucura. Esta é a paz. Esta é ... enquanto ela lia as palavras sublinhadas, eu matutava. Porque é que o amor é tão pequeno?, perguntei, A palavra que quer dizer amor! Porque é que é tão pequena? Passaria completamente despercebida aí, no meio das outras. Foi por isso que resolvi sublinhar palavras, disse, a sempre sábia, Lisa, depois resolvi medi-las. Sabes cheguei à conclusão que o tamanho de cada palavra é directamente proporcional à sua quantidade no mundo. Se uma palavra tem mais que 4 letras então o seu significado é sentido com alguma frequência pelas pessoas crescidas. Quantas mais letras tiver a palavra mais ele é sentido! Então mas e o amor? e a paz? São coisas boas não são? Porque é que as pessoas crescidas fizeram as palavras boas tão pequenas? É por culpa das pessoas crescidas que não há mais paz nem mais amor no mundo!!! Tens tanta sorte em seres apenas uma régua, Lisa...

sexta-feira, agosto 26, 2005



III

Este é o meu pai. O meu pai é uma pessoa crescida e triste. Nunca perdoou aos pais dele por terem passado de pessoas crescidas a pessoas mortas, sem qualquer aviso. Acho que o meu pai tem medo de, um dia, se tornar uma pessoa morta; tal como eu tenho medo de um dia me tornar uma pessoa crescida. O meu pai teve um irmão, mas eu nunca tive um tio. O irmão do meu pai chamava-se João no tempo em que os dois viviam debaixo do mesmo tecto e em que os dois eram meninos como eu. João era mais velho. Era mais sonhador. João sonhava em viajar. Em partir e não voltar mais. Muitas vezes sonhava acordado e, quando não estava a sonhar, pensava em maneiras de realizar os seus sonhos. Acorda, João! Acorda!, gritavam as pessoas crescidas e irritadas com a sua conduta, mas o João raramente as ouvia de tão embrenhado que estava nos seus pensamentos.
Mas, um dia houve em que João acordou. Estava ele com o meu pai a estender a roupa no estendal por detrás da casa velha, no terraço sujo da flor vermelha. Estava imóvel, sonhando como sempre. Tentava, naquele momento, encontrar uma forma de partir, viajar pelo mundo todo, chegar ao céu, eu sei lá.. E foi então que ouviu o meu pai dizer, furioso, Acorda João! A corda João!. Então, extasiado, como se tivesse acabado de descobrir a solução de todos os problemas do mundo, o irmão do meu pai, amarrou a corda do estendal ao pescoço. Puxou com muita força. E partiu.


Nunca mais voltou, nem para ser meu tio.


II

Há um quarto em minha casa que tem as paredes feitas de livros velhos. É um quarto mágico! O ar cheira a outros tempos! O tempo passa pelo ar mais devagar naquele quarto! O pó cai devagar naquele quarto! Aquele quarto está cheio de pó e de livros velhos.

Hoje fomos brincar para lá!! A Lisa queria fazer umas medições. Eu acompanhei-a. Retiramos um livro grosso da parede, pousámo-lo na alcatifa fofa do soalho que o pó criara para nós e abrimo-lo numa página qualquer. O livro estava cheio de palavras! As palavras forravam o livro tal como os livros forravam o quarto.. Este livro é o quarto destas palavras, disse a Lisa, é aqui que elas vivem. Quando abres o livro é como se abrisses a porta do quarto das palavras e é quando as lês que elas ganham confiança e vivem. É como se as libertasses e as convidasses a sair à tua presença, disse. Mas eu não sei ler... Talvez quando for mais crescido como o meu pai. Talvez nessa altura também eu tenha um quarto em minha casa. Talvez nessa altura, também eu tenha livros e os deixe entregues ao pó que cai devagar.

quinta-feira, agosto 25, 2005

I

Olá, o meu nome é Walter. Walter Dego. Apesar de ser mais pequeno que as pessoas crescidas, sei de coisas que elas ignoram! Sei, por exemplo escolher os amigos! Tenho uma amiga e sou feliz com a amiga que tenho! O nome dela é Lisa e não é como as pessoas! Ela é uma régua! E eu sou um menino! E nós somos amigos. Ando com a Lisa para todo o lado, e em todo lado brincamos um com o outro. Costumamos fazer medições. Para as coisas pequenas de medir, eu uso a Lisa. Para as coisas grandes a Lisa usa-me a mim.
Para além da Lisa eu também tenho um pai! Mas ele não é meu amigo. Só a Lisa é minha amiga. É que o meu pai é uma pessoa crescida, e as pessoas crescidas não têm amigos. Acho, até, que as pessoas crescidas não sabem o que é um amigo. Uma vez o meu pai perguntou-me porque é que eu andava sempre com “uma régua” atrás. Eu disse que ela era minha amiga e que íamos medir a flor vermelha do terraço. Ele, zangado, pegou na Lisa com violência e bateu-me no rabo com ela! O meu rabo ficou vermelho como a flor do terraço e doía-me um bocadito. Mas a Lisa diz que a ela não doeu nada!!
As réguas são mais corajosas do que as pessoas!!

terça-feira, outubro 05, 2004

Counter
Counter