quarta-feira, agosto 31, 2005



X

A senhora Diana Tápu é uma mulher gorda e feia. A senhora Tápu tem uma casa na minha aldeia, mas não tem vizinhos. Para entrar na casa dela as pessoas têm que pagar muito dinheiro. Só os homens crescidos da minha aldeia entram em casa da senhora Tápu. Os homens crescidos e tristes.

Os homens da minha aldeia entram tristes naquela casa e saem contentes. Entram sombrios e saem radiantes. Entram à noite e saem pela manhã.

Acho bonito a senhora Tápu ser capaz de transformar pessoas tristes em pessoas felizes.

A senhora Diana Tápu é uma vendedora de felicidade
.

IX

Comi tantos doces hoje!! Descobri uma caixa branca enterrada no canteiro da flor vermelha. Uma caixa mais ou menos grande!! Do tamanho de um menino acabado de nascer. De um menino que nasceu no dia em que era suposto nascer... ou talvez antes.
A caixa estava suja por dentro e tinha um horrível e fétido cheiro. Mas os chocolates estavam bons!! Estavam guardados dentro de uma caixinha de ferro, a um canto da caixa grande. Havia ainda um pequeno peluche cor de rosa. Na barriga do peluche a Lisa conseguiu ler:

Dos teus pais que te amaram eternamente durante o segundo que durou a tua vida.
Comi os chocolates todos. E quando ali estava a olhar a barriga daquele boneco, a minha barriga doeu-me... não sei se para comunicarem, se por ter comido doces de mais ou se foi por outro motivo qualquer...O que eu sei é que se o meu pai tivesse saído naquele momento do trabalho e visse o que descobri não iria ficar satisfeito. Ele ia dizer o quanto gostava daquele canteiro. Ele ia dizer o quanto gostava da minha mãe. Ele ia dizer o quanto gostava da minha irmã.

Ele ia dizer que me odeia.

terça-feira, agosto 30, 2005


VIII

Há muito tempo que não saía de casa. Nunca tinha saído de casa sozinho. Hoje saí de casa e não levei ninguém comigo.
Lembrei-me que na minha aldeia corre um grande rio por baixo de uma grande ponte. Era um rio de água limpa e salgada. Diz-se que nascia na montanha Alta. Perto da aldeia Chorosa. Ali, as pessoas choram a todo momento. Se estão felizes, choram. Se estão tristes, choram. Se estão com frio, choram. Se têm fome choram. Na aldeia Chorosa as pessoas não põem sal na comida. Porque mesmo enquanto comem, choram. Naquela aldeia as pessoas já não falam. Aprenderam a escutar as lágrimas uns dos outros e é assim comunicam. Se não fosse a aldeia Chorosa, o rio não tinha tubarões. Se não fosse a aldeia Chorosa o rio não sabia a mar.

Hoje fui à ponte grande. Do lado esquerdo da ponte está a minha aldeia, do outro lado estão árvores e animais. Quando as pessoas crescidas da minha aldeia estão muito tristes, vão até à ponte Grande e atiram-se. Acho que é para não se sentirem sozinhos.
Acho que é para deixarem as suas lágrimas misturarem-se nas dos outros. Tornando a dor cada vez mais insignificante. Cada vez mais pequena. Até desaparecer. E com ela desaparece também a pessoa que chora.
O corpo das pessoas tristes e crescidas que se atiram da ponte grande transforma-se em parte de um corpo de tubarão. A alma das pessoas tristes e crescidas que se atiram da ponte grande não vai para o céu, vai para o mar que também é azul e é mais bonito.


VII

Em minha casa, no canto oposto ao sítio onde a minha mãe está pousada, ergue-se um quarto permanentemente em obras. É nesse quarto, o quarto negro, que o meu pai trabalha. Ele está a trabalhar a maior parte do tempo. Vai para lá de manhã cedo, depois de dar o liquido da vida à minha mãe, e tranca-se lá até ao cair da noite. Creio que ele não tem noção do cair da noite, pois o quarto não tem janelas e tem paredes pintadas de preto. Está sempre escuro no quarto negro. Quando o meu pai lá está a escuridão adensa-se.
Todos os dias o meu pai aumenta o quarto negro como se aumentasse a sua própria infelicidade. E todos os dias o quarto fica mais escuro.
Quando o meu pai sai do trabalho eu e a Lisa entramos no quarto. Há sempre mais centímetros novos para medir ali. Mas eu não gosto de estar no quarto negro. Não há uma distracção colorida que se intrometa entre nós e nossos pensamentos escuros. Não há uma luz que nos ilumine o caminho. Não há nada... só o negro do quarto e dos pensamentos... e isso é pior que o nada.

Tomei uma decisão. Amanhã, quando o meu pai sair do trabalho, eu vou entrar novamente no quarto negro. Mas não para lhe medir os centímetros novos. Não. Desta vez vou levar tinta branca e vou pintar uma lua em forma de D.

Resolvi transformar o quarto negro no quarto crescente.

segunda-feira, agosto 29, 2005

VI

Nunca tinha visto uma lágrima a escorregar pelo rosto do meu pai. Hoje vi o meu pai chorar. Ele estava no quarto dos livros e do pó, com um velho álbum de fotografias aberto no colo. Devia estar assim há muito porque tinha uma camada espessa de pó e de tempo sobre ele e sobre o álbum aberto na página da tristeza. A fotografia que mais sobressaía daquela página triste era uma fotografia de um sorriso natural de felicidade estampado na cara do meu pai. Eu nunca tinha visto o meu pai a chorar. Também nunca o tinha visto a sorrir. Hoje vi o meu pai.

A Lisa disse-me para não entrar. Pois eu não aparecia na fotografia feliz. Se eu entrasse e me chegasse perto dele. Se no momento em que eu lhe tocasse um flash disparasse, todos saberíamos que eu era a causa do sofrimento do meu pai. E eu não o queria saber. Por isso fiquei encostado à porta, do lado de fora, tentando imaginar o barulho inaudível de lágrimas a embaterem na alcatifa de pó. O barulho inaudível de lágrimas do presente a baterem, a espancarem um passado reduzido a pequenos grãos de poeira. Eu transformei a pessoa que ele amava numa pedra. Talvez, se tivesse conhecido a minha mãe também chorasse de culpa, em silêncio, do lado de fora da porta do quarto dos livros e do pó.

domingo, agosto 28, 2005


V

A minha mãe vive no quarto branco. A minha mãe não é uma menina nem é uma pessoa crescida. A minha mãe é uma pedra. Foi um acidente que transformou a minha mãe numa pedra e o meu pai numa pessoa crescida. Foi o acidente que me deixou respirar o ar pela primeira vez. Eu não nasci no dia em que era suposto nascer. Nasci noutro dia qualquer muito depois desse. Foi no dia do meu segundo aniversário que nasci. E para o fazer tive que rasgar a minha mãe por dentro. Já era um menino grande e já não precisava de mamar.Mas as pedras também não dão leite.


Preciosa era o nome dela. Agora, é a minha pedra preciosa. Todos os dias a visito. E o meu pai, todos os dias, lhe dá comida transparente por um tubo desprovido de cor. Ela não fala, não vê, não ouve, não sente. Só sabemos que não é uma pessoa morta porque faz xixi e cocó por um tubo sujo. Eu gosto muito da minha mãe. Falo mais com ela do que com o meu pai. Há dias do ano que lhe conto as coisas bonitas. Há dias do ano que lhe conto os jogos que faço com a Lisa. Há dias do ano que lhe conto como é linda a flor vermelha do terraço que ela não viu crescer. Há um dia do ano que lhe peço desculpa. Nesse dia as pessoas crescidas dão-me presentes...

sábado, agosto 27, 2005



IV

Hoje à noite, fui descobrir a Lisa a medir palavras no quarto dos livros. O quarto dos livros é iluminado por uma lâmpada presa no tecto, sem candeeiro sem nada. Só a lâmpada a iluminar o centro do quarto. A iluminar Lisa e um livro aberto. A gravidade de uma campa vazia era o rosto de Lisa no momento em que eu entrei. Fiz uma descoberta fantástica, disse ela num sussurro. Aproximei-me dela e vi que haviam palavras sublinhadas entre a imensidão de palavras por sublinhar. O que são?, perguntei. São palavras às quais as pessoas crescidas dão significado. Vês esta? É o amor. Esta é a solidão. Esta é a loucura. Esta é a paz. Esta é ... enquanto ela lia as palavras sublinhadas, eu matutava. Porque é que o amor é tão pequeno?, perguntei, A palavra que quer dizer amor! Porque é que é tão pequena? Passaria completamente despercebida aí, no meio das outras. Foi por isso que resolvi sublinhar palavras, disse, a sempre sábia, Lisa, depois resolvi medi-las. Sabes cheguei à conclusão que o tamanho de cada palavra é directamente proporcional à sua quantidade no mundo. Se uma palavra tem mais que 4 letras então o seu significado é sentido com alguma frequência pelas pessoas crescidas. Quantas mais letras tiver a palavra mais ele é sentido! Então mas e o amor? e a paz? São coisas boas não são? Porque é que as pessoas crescidas fizeram as palavras boas tão pequenas? É por culpa das pessoas crescidas que não há mais paz nem mais amor no mundo!!! Tens tanta sorte em seres apenas uma régua, Lisa...

sexta-feira, agosto 26, 2005



III

Este é o meu pai. O meu pai é uma pessoa crescida e triste. Nunca perdoou aos pais dele por terem passado de pessoas crescidas a pessoas mortas, sem qualquer aviso. Acho que o meu pai tem medo de, um dia, se tornar uma pessoa morta; tal como eu tenho medo de um dia me tornar uma pessoa crescida. O meu pai teve um irmão, mas eu nunca tive um tio. O irmão do meu pai chamava-se João no tempo em que os dois viviam debaixo do mesmo tecto e em que os dois eram meninos como eu. João era mais velho. Era mais sonhador. João sonhava em viajar. Em partir e não voltar mais. Muitas vezes sonhava acordado e, quando não estava a sonhar, pensava em maneiras de realizar os seus sonhos. Acorda, João! Acorda!, gritavam as pessoas crescidas e irritadas com a sua conduta, mas o João raramente as ouvia de tão embrenhado que estava nos seus pensamentos.
Mas, um dia houve em que João acordou. Estava ele com o meu pai a estender a roupa no estendal por detrás da casa velha, no terraço sujo da flor vermelha. Estava imóvel, sonhando como sempre. Tentava, naquele momento, encontrar uma forma de partir, viajar pelo mundo todo, chegar ao céu, eu sei lá.. E foi então que ouviu o meu pai dizer, furioso, Acorda João! A corda João!. Então, extasiado, como se tivesse acabado de descobrir a solução de todos os problemas do mundo, o irmão do meu pai, amarrou a corda do estendal ao pescoço. Puxou com muita força. E partiu.


Nunca mais voltou, nem para ser meu tio.


II

Há um quarto em minha casa que tem as paredes feitas de livros velhos. É um quarto mágico! O ar cheira a outros tempos! O tempo passa pelo ar mais devagar naquele quarto! O pó cai devagar naquele quarto! Aquele quarto está cheio de pó e de livros velhos.

Hoje fomos brincar para lá!! A Lisa queria fazer umas medições. Eu acompanhei-a. Retiramos um livro grosso da parede, pousámo-lo na alcatifa fofa do soalho que o pó criara para nós e abrimo-lo numa página qualquer. O livro estava cheio de palavras! As palavras forravam o livro tal como os livros forravam o quarto.. Este livro é o quarto destas palavras, disse a Lisa, é aqui que elas vivem. Quando abres o livro é como se abrisses a porta do quarto das palavras e é quando as lês que elas ganham confiança e vivem. É como se as libertasses e as convidasses a sair à tua presença, disse. Mas eu não sei ler... Talvez quando for mais crescido como o meu pai. Talvez nessa altura também eu tenha um quarto em minha casa. Talvez nessa altura, também eu tenha livros e os deixe entregues ao pó que cai devagar.

quinta-feira, agosto 25, 2005

I

Olá, o meu nome é Walter. Walter Dego. Apesar de ser mais pequeno que as pessoas crescidas, sei de coisas que elas ignoram! Sei, por exemplo escolher os amigos! Tenho uma amiga e sou feliz com a amiga que tenho! O nome dela é Lisa e não é como as pessoas! Ela é uma régua! E eu sou um menino! E nós somos amigos. Ando com a Lisa para todo o lado, e em todo lado brincamos um com o outro. Costumamos fazer medições. Para as coisas pequenas de medir, eu uso a Lisa. Para as coisas grandes a Lisa usa-me a mim.
Para além da Lisa eu também tenho um pai! Mas ele não é meu amigo. Só a Lisa é minha amiga. É que o meu pai é uma pessoa crescida, e as pessoas crescidas não têm amigos. Acho, até, que as pessoas crescidas não sabem o que é um amigo. Uma vez o meu pai perguntou-me porque é que eu andava sempre com “uma régua” atrás. Eu disse que ela era minha amiga e que íamos medir a flor vermelha do terraço. Ele, zangado, pegou na Lisa com violência e bateu-me no rabo com ela! O meu rabo ficou vermelho como a flor do terraço e doía-me um bocadito. Mas a Lisa diz que a ela não doeu nada!!
As réguas são mais corajosas do que as pessoas!!
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