quinta-feira, setembro 29, 2005


XXIII

Cobarde! A cobardia é o mais recente reflexo no espelho do meu pai. Ele já preparava esta morte há muito tempo. Construiu o quarto negro para nele se refugiar.
Os homens da minha aldeia viram a sua felicidade colectiva verter sangue e morrer. Não ficaram tristes com a ausência de felicidade. Ficaram furiosos! Quando a felicidade morre nasce o ódio e não a tristeza. Juntaram-se em torno de uma causa como nunca o haviam feito. A morte é importante, gritavam. Invadiram a minha casa. Revistaram tudo. Mas o quarto negro era grande demais: como a noite de um pequeno país. Não encontraram nada, apenas a lua sempre crescente do quarto negro. Dizer que não encontraram nada é dizer que não encontraram o meu pai. Dizer nada é dizer pai.

O meu pai trouxe a guerra à aldeia. Onde antes havia um homem ludibriado pelos encantos da senhora Tápu existia agora um guerrilheiro e o azedume do seu sorriso.
Estamos em guerra! Temos que estar em guerra! A guerra é a forma mais fácil de resolver os problemas do homem, gritou o rei da aldeia.

Escolheram o inimigo. O inimigo era ‘os maus ’. ‘Os maus ’ eram todos os outros!
As mulheres ficavam em casa. Preparavam a bucha para os guerrilheiros. De manhã, o guerrilheiro dizia para a esposa, vou à guerra, ela dava-lhe um beijo rápido na cara e dizia, não venhas tarde. Os meninos pequenos também iam à guerra. Eu também ia à guerra. Todos os dias um tanque comprido vinha buscar os meninos a casa.


A escola fechou. Para quê aprender a escrever um ensaio quando o que é preciso é saber onde espetar uma faca.

Não sei ler. Nem escrever. No entanto, hoje, apunhalei um menino que escrevia poemas de amor.

quarta-feira, setembro 28, 2005


XXII

Bati à porta. O sorriso que o meu pai tinha nos lábios não desapareceu quando eu apareci. Estás atrasado ,disse-me. E, num passo acelerado, trancou-se, sorridente, no quarto crescente.
Entrei em minha casa da mesma forma que se entra na casa de um estranho. Tudo estava igual, nenhum objecto se deslocara um centímetro durante o tempo em que estive fora, no entanto tudo me parecia diferente. São os teus olhos, Walter, disse Lisa enquanto se aproximava, és tu que estás diferente e vês as coisas com essa diferença que mora em ti. Lisa, és mesmo tu?? Oh Lisa, Lisa! Que saudades! Sabes Lisa? Eu chorei !! Sim!! E fiquei triste!! E vi uma Sereia! E um Bêbado! E uma Velha! E vi um dia preto! E a aldeia chorosa! Vi o mundo, Lisa! Vi o mundo! Viste um mundo que não era o teu.
Ontem, no teu mundo O teu pai matou uma pessoa. Ontem, no teu mundo, o teu pai concretizou um desejo antigo. O teu pai matou uma pessoa e foi feliz. Matou por amor! Matou por egoísmo! Matou quem amava por amor profundo, que é o egoísmo elevado ao extremo de um abismo infinito.
Oh não!! Mamã?!

Não Walter.

A Senhora Diana Tápu morreu.

quinta-feira, setembro 22, 2005


XXI

Há um rio que nasce na aldeia Chorosa momentos depois de nascer uma lágrima. Há um rio que faz com que a água do mar seja salgada. No mar, quando o tempo aquece, pessoas flutuam em lágrimas e sorriem. A felicidade não é uma coisa universal. Fico feliz por saber que há pessoas que choram para outras poderem molhar os pés. Fico feliz por saber que a tristeza de alguém pode se transformar numa coisa bonita como um mergulho na onda perfeita.
Nunca fui à escola. Mas a Lisa diz que ninguém explica aos meninos porque é que o mar é salgado. Na escola ensina-se letras e números. Ensina-se histórias e vísceras. Ensina-se que um dia nasceu uma pessoa importante. Ensina-se que só as pessoas mortas são importantes.

Ensina-se a não falar com colega do lado. Se for o nosso amigo, separam-nos e colocam-nos em extremos opostos.
Na escola, ensina-se que jogar ás escondidas não presta. Ensina-se futebol aos meninos e ballet ás meninas.
Lisa já esteve em escolas. Lá ensina-se que os meninos ricos são espertos e que os pobres são pobres. Ensina-se que os meninos ricos podem bater nos meninos pobres e que as professoras podem bater nos meninos pobres.
A escola é um mundo diferente. As réguas não falam, batem nos rabos.
Na escola ensina-se a ser mais crescido. Os meninos mais crescidos ensinam palavras aos meninos mais pequenos. Palavras que ouvem à porta da senhora Tápu e que repetem aos ouvidos uns dos outros. Palavras que a professora diz que são feias enquanto lhes bate na boca com a régua de pau. Palavras que a professora grita entre os lençóis enquanto lhe bate na boca um outro pau.
Palavras irrelevantes como todas as outras para quem é pequeno e não sabe ler. Nem escrever.
Para quem não andou na escola mas sabe porque é que o mar é salgado.

segunda-feira, setembro 19, 2005


XX

Eu estou triste. No entanto é possível ser feliz na aldeia Chorosa. As pessoas não choram porque estão tristes. As pessoas choram porque são pessoas.
Os cães não choram na aldeia chorosa porque os cães não choram. Eu choro.
Lembro-me das palavras pequenas e das palavras grandes. Aqui não existem palavras. Para que queremos palavras quando temos lágrimas?! Quando choramos não queremos falar com ninguém. Não é preciso falar quando se chora porque é mais fácil sentir lágrimas do que palavras. As palavras são coisas tão estúpidas e invisíveis para quem é pequeno e não sabe ler. Nem escrever. As lágrimas, por seu lado estão lá! São reais!!
A minha aldeia é real e eu quero ser dentro dela. Quero aprender a ler e a escrever! Quero saber porque escrevem os artistas! Com que lágrimas pintam os poetas?

Uma senhora idosa aproxima-se de mim. Não fala. Chora lágrimas que lhe secam o corpo. Chora lágrimas de vida. A vida sai do corpo velho daquela senhora idosa e cava trincheiras na sua cara. As lágrimas cavam a as trincheiras no seu rosto. Estamos em guerra, diria, desde o momento que nascemos lutamos para que sintamos a morte. Lutamos todos os dias para que o dia da morte seja um dia mau! Terrível!! Horripilante!!! Para que não seja só mais um dia do mundo! E eu estou viva! Vês estas rugas na minha cara? Estão por todo corpo!! É impressionante não é? Elas provam que estou viva! Vivo todos os dias desde o dia em que nasci! É impressionante não é?

És uma velha. Quando for grande quero ser como tu! Um velho.

Um velho que viveu todos os dias desde o dia em nasceu uma pedra.
Mais importante: Um velho que VIVEU TODOS OS DIAS.

sábado, setembro 17, 2005


XIX

Não há nada que me indique o caminho para a minha aldeia. Nem a brisa. Nem o sol. Nem as plantas. As árvores e os seus ramos apontam para todas as direcções possíveis. Cada ramo que rasga um tronco de árvore, nasce com um objectivo: indicar o caminho de uma vida.. Há milhares de árvores nesta floresta! Milhões de ramos e alternativas!
Só tenho que escolher um e esperar que seja o correcto.
Fecho os olhos. Viro a cabeça para o lado esquerdo do corpo. Abro os olhos devagar. E escolho o primeiro ramo que vejo.
Ali está o ramo que me levará ao meu ninho, pensei sorrindo.
A esperança crescia em mim a cada passo que dava em direcção à direcção profética. Sim profética!! Não são os “profetas” os adivinhos! O que realmente é poderoso e mágico são os seus bastões, as suas bengalas, os seus cajados, os seus paus de caminhante, os seus ramos de árvore-que-aponta-o-caminho.
E a consciência de tudo isso fazia a esperança aumentar de tamanho e de peso! Naquele momento nenhum sentimento era tão relevante como a esperança. Alias nenhum sentimento é relevante quando o não sentimos. Ali era esperança o que sentia! Esperança e a excitação a ela inerente.
Se o futuro bastão do próximo salvador dos hOMENS não se equivocara, depois deste monte, serei capaz de vislumbrar a minha aldeia. E depois a casa da senhora Tápu. O meu pai a percorrer o caminho que une a sua casa à da senhora Tápu. A percorrer a única coisa que de facto os une. Depois a minha casa! Depois Lisa!! A Mãe!!! A flor Vermelha!!!!! Estou tão entusiasmado que quando vejo a aldeia do cimo do monte, o meu peito quase rebenta com a súbita transformação da esperança em radiante certeza!!
Desço o monte a dar cambalhotas! Cambalhotas e gargalhadas! Como um menino pequeno que regressa a casa! Ah! Ah! Ah!




Não ha casa.... Ha chuva! A minha aldeia não é esta!! As pessoas! As ruas! Nada disto é o que é minha aldeia! Não há um pai que seja meu! Nem uma régua que fale! Porquê?
A esperança desaparece como se não houvesse já nada vivo... Os meus olhos enchem-se de água e sal e desilusão. Choro como se a função dos meus olhos fosse chorar! Como se os olhos não servissem para ver. Como se os meus olhos não vissem a minha aldeia e apenas chorassem por ela.


E as minhas lágrimas embatem no solo molhado da aldeia chorosa.

terça-feira, setembro 13, 2005


XVIII

Agora sou obrigado a crescer! Mesmo que já não me apetecesse ser uma pessoa crescida teria de o ser obrigatoriamente. Eu estou perdido na floresta. Não sei voltar atrás e ser menino outra vez na minha aldeia. Não tenho a minha amiga a meu lado para me garantir que sou o mesmo! Que os centímetros não passam por mim como passa o tempo! Mede-me Lisa! Mede-me as memórias para saber o quanto de ti perdi no tempo que separa a minha casa do pedaço de chão onde apoio os pés. Quanto de mim se perdeu com o que se perdeu de ti na minha memória? Acredito que seja muito. Acredito que tenha pouco daquilo que um dia fui. E tu Lisa? Quem eras tu? Uma régua? Ridículo!! As réguas não são coisas vivas! Pois não? As coisas vivas vivem em florestas e eu nunca vi uma régua nesta floresta de perdição...
A inverosimilhança da minha infância cai sobre mim como um pesado elefante cinzento! Cinzento ouviram? Não de outra cor qualquer porque não existem elefantes de mais nenhuma cor! Só o cinzento e sua monotonia. Ser crescido é estabelecer fronteiras à imaginação!! É aceitar a imaginação como um trabalho! É aceitar tudo como um trabalho! E um trabalho é uma coisa chata que, de vez em quando, tem de ser feita!! E ter de fazer algo é estar a ser forçado... Foi por isso que eu saí da minha aldeia não foi, meu dEUS?

Não é o lugar onde assentamos os pés, que nos transforma naquilo que iremos ser.

É a amplitude dos nossos passos.

Vou voltar para a minha aldeia... mas primeiro tenho que encontrar o caminho.
O meu caminho.

XVII

Há uma sereia na floresta. Há uma sereia sentada numa das muitas pedras mortas da floresta. E eu vi-a.

Era uma seria muda e bonita só que em vez de uma barbatana de peixe tinha duas pernas de mulher.
Perguntei-lhe o que estava a fazer uma sereia tão bonita num sitio tão feio e tão seco.

Não te posso responder porque sou muda. Mas se o não fosse dir-te-ia que sou uma sereia aventureira. Sim! Procuro uma coisa especial. A coisa mais importante e preciosa que existe no mundo!! Procuro aquilo que é capaz de mudar a vida das pessoas! Aquilo que é tão grande que não cabe numa palavra. Procuro aquilo que, por ser tão grande, nos enche os corações e não nos faz desejar mais nada!! No fundo procuro a única coisa capaz de dar sentido à vida. Aquilo que faz com que a vida queira viver! Percebeste o que eu não disse?

E como eu a entendo! Ela quer alguém que chore por ela. Ela que alguém que possa construir um oceano de água salgada onde ela possa nadar com as suas bonitas pernas de mulher. Ela quer um mar de lágrimas!

Se eu já fosse crescido e triste podia dar-lhe o que ela não me pediu.
Se eu fosse crescido e triste podia fazer as pedras tremer dizendo uma palavra pequena.

Mas não o faria porque existem pessoas mudas . Pessoas que não conseguem dizer: “Também te amo meu amor”

sábado, setembro 10, 2005


XVI

Eram horas da noite começar.
Eu fechei os olhos e pedi ao dEUS para que ligasse o candeeiro do céu.

Há coisas que, por ser um menino pequeno, gostaria que fossem diferentes daquilo que são.

A noite é uma delas.
As estrelas são tão bonitas, dizia muitas vezes para a minha régua, a lua é tão mágica tão viva! È uma pena serem horas da noite começar quando finalmente as coisas bonitas nascem no céu. È uma infeliz coincidência serem horas de dormir quando são horas da noite começar. Para quê criar tamanho espectáculo visual se não há ninguém com os olhos abertos quando chegam as horas da noite?
Mesmo que alguém tente resistir ao peso da escuridão sobre as pálpebras, não o consegue fazer durante muito tempo. Há coisas tão belas que não lhes são permitidos olhares demorados. Se a Lisa aqui estivesse diria que o sono é censura ao serviço de dEUS.

Aposto que no momento em que fechamos completamente os olhos e perdemos parcialmente a consciência, nesse momento único de uma demência dormente, o espectáculo celestial começa.
Aposto que todas as coisas visíveis no céu deixam de estar paradas no momento em que deixamos de estar acordados. Todas as longínquas bolas de fogo transformam-se em bonitas bolas de fogo e de arte.
Há um grande fogo de artificio universal quando juntamos as pálpebras!!
Dizem mesmo que o universo nasceu da beleza e da força de um fogo de artifício.

Acho que é por isso que o dEUS criou o sono. Para nos impedir de criar um universo nosso e real.
Para nos iludir, o sono criou o sonho. Podemos criar universos inteiros com foguetes e tudo. Mas o acordar transforma o tudo em nada tão depressa que até a memória do tudo, surpreendida, se deixa transformar em nada...

É por isso que acho que o dEUS é mau. E se o dEUS é mau é porque é um hOMEM.

dEUS é o hOMEM que não dorme...

quinta-feira, setembro 08, 2005


XV

O dia ergueu-se, como em todos os dias. O sol não se ergueu com o dia. O dEUS, ocupado com a insignificância dos sonhos do hOMEM, esquecera-se de trocar a lâmpada do candeeiro do céu. O dia estava mais negro que a noite. De noite há a lua e as estrelas. De dia, se não há sol, não há nada. E o nada é escuro.

No entanto havia uma luz na floresta. Uma luz vermelha e intermitente. A luz quente de uma fogueira. À volta da fogueira, sentado no chão, estava um velho bêbado e feliz. Ele era feliz porque era bêbado. Eu falei com ele porque era velho.
Sabes rapaz, disse o feliz, para teres uma mulher que te ame, tens que saber “lá ir”. E eu sei “lá ir”. Eu tenho uma mulher que me ama. Eu sei o que é o amor. Ao ouvir a palavra amor nada mudou em mim. Lembro-me que quando o meu pai dizia: Preciosa, eu amo-te, havia tremores de terra na aldeia. Não só a minha mãe estremecia, como todas as pedras o faziam. Ali.. Nada... Os bêbados retiram a importância ás palavras, pensei. As palavras dos bêbados, quando abandonam a sua boca perdem a coisa que de mais precioso têm... o significado.

Um bêbado fala e a palavra não diz nada.
Um bêbado fala e polui o ar com as suas palavras mortas e o seu hálito de morto.

Pobre velho bêbado e feliz.

Se o que dizes é verdade, não tens uma mulher que te ama.
Tu tens um buraco que fala.

XIV

O sol, como uma lâmpada brilhante, colidiu com o chão duro. O sol como uma lâmpada dividiu-se em mil estilhaços quando colidiu com o chão. O fio fino e ténue que habita o interior das lâmpadas, o fio que é a fronteira entre a Luz e as Trevas quebrou-se com a violência do impacto e desapareceu na escuridão.
Com a queda do sol, a Noite caiu na Terra.

Aqui no escuro da floresta, sinto-me desconfortável porque me sinto só. Chego mesmo a sentir que o desconforto é a tristeza antes de o ser. Sabes Lisa, acho que hoje senti a palavra grande e má que um dia sublinhaste. E senti essa palavra, a solidão, como a primeira pedra de uma calçada comprida que vou ter que percorrer para ser crescido e triste... para ser uma pessoa.

Apeteceu-me gritar os nomes dos responsáveis pela minha solidão! Se vocês não existissem eu nunca saberia o que era estar na vossa ausência... Mas não gritei.

A solidão é uma coisa surda, diria Lisa.
Senti a tristeza a invadir-me.
Sem ti, Lisa, senti a tristeza. Sem ti, Mãe, senti a tristeza. Sem ti, pai, senti a tristeza. Sem vós... senti-me rouco.

Hoje, no escuro solitário da floresta, reparei numa gota que me escorria pela cara. Uma gota que deslizara até ao queixo e se precipitara para o espaço vazio. Uma gota que colidiu com o chão duro e desapareceu na escuridão.

Hoje, cresci uma lágrima.

terça-feira, setembro 06, 2005


XIII

Ao afastar-me de casa, ao afastar-me do centro da aldeia, vislumbrei a casa da senhora Diana Tápu. Parei em frente à porta. Ouvi gritos que eram um misto de dor, ferocidade, e contentamento. Não ouvi a voz da senhora Tápu. Somente a voz do meu pai.

Fiquei muito tempo a ouvir aquele monologo de gritos estridentes. Muito tempo e muitos sons passaram pelo meu desenho imóvel. Estou a crescer, pensei.
Pensei mesmo que para um dia ser uma pessoa crescida teria que ouvir primeiro muitos daqueles sons. Como se não bastasse o tempo passar por mim. Não! Crescer é muito mais complicado que o passar do tempo! Para crescer tenho que fugir para longe. E sinto que tenho que ouvir aqueles sons outra vez! Mais de perto. Mais alto. Mais meus.

Afastei-me da porta quando o meu pai se aproximou da porta. Estávamos separados por uma parede como sempre estivemos toda a nossa vida. Mas desta vez o desenho estava mais intenso. A nossa vida estava mais intensa. Do outro lado da porta, o meu pai e um cheiro intenso a pessoas crescidas. No meio, a parede que sempre nos separou era agora visível e de tijolo sujo. Do meu lado, a porta a ficar cada vez mais longe, a casa a ficar mais longe, a aldeia a ficar mais longe. Tudo a ficar mais pequeno à medida que eu me afastava. E eu crescia.

Tudo me parece tão incrivelmente insignificante agora que estou longe.

O valor das coisas não está na sua real importância. Está na distância a que delas estamos.

XII

Não planeei a minha fuga. Estava farto de ser e então decidi fugir. Acho que aquilo que somos depende do sítio onde estamos. Tal como depende do nome que temos. Eu chamo-me Walter Dego. Se me chamasse Óscar Almeida seria forçosamente outro menino. Se continuasse em minha casa seria forçosamente feliz.
E eu estou farto de ser forçado e de ser feliz.

No dia em que fugi falei com a minha mãe e pedi-lhe para me desculpar como se ela o fosse capaz de fazer. Falei com a minha mãe como se ela não fosse uma pedra. Ao meu pai não disse nada. Nunca digo nada ao meu pai. Falo com ele com o silêncio. Como se falasse para uma pedra.

Parti sem bagagem porque sou um menino pequeno. Os meninos pequenos não têm um passado que pese e que valha a pena transportar. Mas levei três caramelos para o caminho. Um na mão direita. Um na mão esquerda. E o outro na boca, colado ao dente mais inacessível.
A Lisa não quis vir comigo porque a Lisa não é feliz. A Lisa é sábia! E por tudo saber, sabe que não pode ser feliz. Sabe que quando se sabe tudo é porque se é velho. E um velho não pode ser feliz porque nenhuma morte o é.
Mas eu sou ainda um menino pequeno e sou ainda feliz.
Decidi fugir para longe porque decidi crescer
.

segunda-feira, setembro 05, 2005



XI

Sou feliz e estou farto. Sou feliz porque sou um menino e não choro. Ser feliz é uma coisa que sou, não é um estado que dê para alterar. Não pudemos alterar o que somos pois não? Eu sou feliz. E estou farto porque sou feliz. O aborrecimento que me envolve é um estado. Deveria ser alterável. Mas como estou farto de ser feliz e vou ser sempre feliz, pois a felicidade é uma coisa minha e inata, estou condenado a estar para sempre farto e aborrecido. Mas estar permanentemente num determinado estado é ser o que se está não é? Quando passarei eu a ser feliz e farto? Poderei ser sempre feliz estando sempre farto de o ser?

Disse à Lisa que ia fugir de casa. Não disse ao meu pai que ia fugir de casa. Nem uma palavra, nem a mais suave das reacções. A Lisa agiu como seu lhe tivesse dito que ia continuar a respirar. Sem surpresas. Trancou-se no quarto negro. Foi-se surpreender com os novos centímetros que ela sabe que existem.
Existem sempre novos centímetros.
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