quarta-feira, dezembro 28, 2005

XXXI


Lisa: "Nem sempre as certezas são a base para algo seguro."

Ontem vi a beleza escrita na parede comum . Todo o meu corpo se rendeu à harmonia das curvas que aquelas letras transpiravam. O meu dedo mindinho estremeceu e, como que assaltado por uma vida que não a minha, percorreu os traços deixados na parede pela mão mais perfeita da divina perfeição. Rasto de tinta azul com lágrimas de choro vermelho. Segui-o. Estou certo que é isto o amor.. Uma mistura de beleza inverosímil de lágrimas, cor e perfeição.

O rasto conduziu-me a um caixote escuro, ao fundo de um beco de papel. Um beco com uma única saída... Imaginação.
Dentro do caixote estavam pedaços de alguém. És tu? perguntei hesitante... A resposta demorou o tempo de uma batida de coração acelerado. Não.. Não sou eu.. eu sou os restos de quem procuras.. devias ter chegado mais cedo... mais cedo.. antes da tua falta me ter criado.. antes do teu amor estar perdido para sempre na inutilidade destes dejectos..


A dor no peito.. arrancaram-me o coração, pensei. Já não preciso dele. Mas a dor... Intensa... As lágrimas a saírem-me dos olhos como balas... lágrimas vermelhas... caindo a meus pés. confundindo-se com o sangue da minha amada.. Trama... o seu nome.. doce Trama.. E por isso o beco era de papel.. Agachei-me e mergulhei o meu dedo mindinho no nosso amor: lágrimas e sangue...


Escrevi:
Beleza...


XXX


A minha mãe tem uma amiga que não tinha amigos.
A senhora Irfanha vem todos os dias a minha casa tomar chá, jogar ao pisa-pé e falar de nuvens mortas.
Quando uma nuvem morre as outras choram e as plantas vivem, dizia para a minha mãe.
É o ciclo da vida. Tu, por exemplo, só viveste porque a senhora Tápu morreu.
A senhora Irfanha é famosa na minha aldeia. A senhora Irfanha é loura mas tem fama de louca. A sua fama é uma letra de diferença.


A senhora Irfanha gosta de ter tudo limpinho. Principalmente aquilo que não sabe para que serve. Não vá um dia ser preciso, dizia. Todos os dias limpa as pedras do seu terraço. Limpa a parte de baixo dos móveis. Limpa os rótulos negros das compotas. Limpa os espinhos da roseira. Limpa a parte branca do olho. Limpa caroços de melancia. Limpa nuvens vivas. E limpa o sexo. Não vá um dia ser preciso, dizia.

A casa da senhora Irfanha tem um espelho tapado com um pano preto. Gosto de estar sozinha, replica. É um espelho antigo que Irfanha comprou a um mágico vidente. Quando estava sol ele olhava o espelho e dizia: VAI CHOVER!! e, mais cedo ou mais tarde chovia mesmo. A senhora Irfanha comprou o espelho para estar a par dos funerais celestes. Quando as nuvens choram fica triste e pisa as plantas do canteiro.
Malvadas!! por vossa causa o céu está de luto!!!

Diana Tápu.

Aquilo que não sabe para que serve.

Morte.



Já acabei o chá, Preciosa! Vamos jogar ao pisa-pé?

XXIX


Passou um mês com o tempo de um ano. Um ano são poucas horas para as que coisas que acontecem num mês aconteçam. Eu, tenho vivido. Vivido calado.

(pausa)

(os corvos param de praguejar)

(ouço a voz da minha mãe a chamar pelo nome que escolheu à 9 anos)

Lisa: A mãe do Walter acordou quando o quarto crescente foi lua cheia. Ás vezes é preciso que pessoas se percam na escuridão que constroem para que as pedras abram os olhos à luz..

Conheci a minha mãe. falei com ela e ela comigo. disse-lhe olá!!! e ela disse Quem és???

Não soube responder.
As perguntas de sempre parecem ameaçadoramente maiores quando nascem da boca de alguém importante.
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